Capítulo 9 -Entre Amigos, Silêncios e Orquídeas

Neusa Mateus

Os dias que se seguiram ao Natal pareceram-me diferentes. Havia algo no ar, talvez resquício da alegria partilhada, ou talvez um nome apenas sussurrado na minha memória: Aiko.

Divagava muitas vezes sobre o Natal da minha infância no Quénia. Recordava os cultos ao ar livre, a música vibrante das congregações, o cheiro da terra molhada, dos chapatis quentinhos e do guisado de legumes que a minha mãe fazia com tanto zelo. Eram tempos simples, e ainda assim, cheios de profundidade. A fé era a luz das nossas casas. Aqui no Porto, a tradição era outra, mas eu tinha feito as pazes com esse contraste. Aprendi a adaptar-me. A encontrar Cristo nos detalhes: na mesa partilhada, no riso dos amigos, na calma de um fim de tarde.

Era o penúltimo dia útil antes das férias coletivas. Eu e o David estávamos no escritório, rodeados de papéis, computadores e as pequenas plantas que insistíamos em manter vivas na janela, apesar do inverno pouco amigável.

— Está tudo fechado com a cooperativa? — perguntei, passando os olhos pela última proposta.

— Sim. Já entregámos os relatórios e a última remessa saiu esta manhã. Só falta mesmo arquivar estes contratos e despachar o e-mail para o parceiro de Braga. — respondeu ele, sem tirar os olhos do ecrã.

— Glória a Deus, então. — disse, sorrindo. — Acho que merecemos uma noite para celebrar. Sair, jantar, arejar as ideias.

David encostou-se na cadeira, cruzando os braços atrás da cabeça.

— Uma noite só de homens?

— Só de homens. Conversa boa, comida melhor ainda. Estás dentro?

— Óbvio. Já tinha saudades de uma boa tertúlia. E se chamássemos o Filipe? O marido da Teresa. Gente boa.

— Boa ideia. — respondi, já a procurar o número do Filipe no telemóvel. — Sempre curti o espírito dele. É daqueles que dá gargalhadas mesmo quando não percebe a piada toda.

Ligámos-lhe ali mesmo. A chamada foi rápida, recheada de risos e combinações descontraídas. Escolhemos um restaurante acolhedor em Matosinhos, com pratos de forno, boa carta de vinhos e uma vista modesta para o mar — ainda que à noite, pouco se visse dele.




Na noite seguinte, a chuva fazia o seu habitual concerto contra os vidros. Entrámos no restaurante a sacudir os casacos, rindo da falta de jeito com que tentávamos não escorregar no chão molhado.

Sentámo-nos os três num canto discreto, perto da lareira. O ambiente era quente, com cheiro a madeira e vinho tinto, o tipo de lugar onde o tempo parecia abrandar.

— Sabem o que me faz falta? — disse Filipe, logo depois de brindar. — Uma semana sem relógio. Só comida boa, livros e sossego.

— Ou então, aventura — contrapôs David. — Algo como fazer uma caminhada na neve, acender lareira e filosofar sobre a vida a beber chocolate quente.

— Eu prefiro observar a neve de dentro de casa, com mantas e chá. — disse, sorrindo. — Deus é grande, mas o frio da Serra não é para brincar.

Rimo-nos os três. As entradas chegaram — cogumelos salteados, pão de centeio com azeite e orégãos — e logo vieram os pratos principais. Conversámos sobre trabalho, fé, projetos para o novo ano, e em determinado momento, o tema descambou para as nossas companheiras e o famoso jantar de Natal.

— A tua casa estava linda, Noah — comentou Filipe. — E aquela decoração com orquídeas foi uma jogada de mestre. A minha Teresa comentou que nunca viu nada tão elegante.

— Foi tudo muito espontâneo. Só juntei coisas que me fazem sentido. E vocês tornaram tudo memorável. — respondi, com gratidão.

Filipe inclinou-se um pouco para a frente, um sorriso maroto nos lábios.

— E a tua convidada especial? A amiga da Sofia... como é que se chama mesmo?

— Aiko. — disse David, antes de mim.

— Isso. Aiko. Muito carismática, não achaste?

Sorri com naturalidade, pousando os talheres.

— Interessante. Só isso. Uma mulher inteligente, com uma presença serena. Mas nada além disso.

David lançou-me um olhar de lado, enquanto tomava um gole de vinho.

— Sabes que tens um jeito muito... bíblico de dizer “estou a pensar nela todos os dias”, não sabes?

— Deus conhece o meu coração. — respondi, entre risos. — Se houver algo ali, Ele mostrará. Se não, guardo as boas conversas e a simpatia que ela deixou.

— Justo. — disse Filipe, levantando a taça. — Às boas conversas e às surpresas do céu.

— Amém. — concordámos.

Depois de mais algumas histórias, recordações da infância, e um pudim de ovos que parecia ter vindo diretamente do paraíso, levantámo-nos para pagar. Enquanto o Filipe ia buscar os casacos, dirigi-me ao David.

— Olha, sobre a viagem para a Serra da Estrela... pensei melhor. Não faz sentido ir sozinho no meu carro. Achas que podia ir convosco?

— Claro! O carro é grande e ainda temos espaço. Vai ser divertido.

Ele não mencionou quem mais ia. E eu não perguntei. Talvez não quisesse saber. Ainda.




Cheguei a casa e tudo estava no seu silêncio habitual. Tirei o casaco, aqueci uma chávena de camomila e fui até à estufa coberta onde mantinha as minhas orquídeas. Aqueceu-me o coração ver que, apesar do frio, algumas ainda floriam.

Aproximei-me de "Renovo", a minha orquídea branca favorita. Era mais do que uma planta. Era símbolo de superação, de começos novos. Passei os dedos pela haste delicada e murmurei:

— Não sei o que estás a tentar dizer-me, mas eu ouço-te.

Fiquei ali por minutos. A pensar. Não tanto nela, mas no que ela despertava em mim.

Peguei a chávena, subi ao quarto e antes de apagar a luz, murmurei:

— Senhor, que seja a Tua vontade. E que o que vier, venha com paz.

 

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