Capítulo 8 - Café para Dois e uma Mente em Divagação

Neusa Mateus

Narrado por Aiko

Havia algo no inverno em Portugal que me deixava desconcertada. Talvez fosse a humidade persistente, ou o modo como o frio parecia entrar pela alma antes de alcançar a pele. Em Nagano, o inverno era seco, nobre e previsível. Aqui, parecia melancólico, como um poema antigo escrito com dedos trêmulos. Estava sentada à janela do meu estúdio de cerâmica, observando o vapor da minha caneca de chá dançar ao encontro dos vidros gelados.

Pensei em como o Natal se tornara um ritual silencioso para mim. Sem a presença dos meus pais, que tinham regressado ao Japão há alguns anos, restava-me o eco das memórias: a sopa de missô ao pequeno-almoço, os votos silenciosos de prosperidade para o novo ciclo e as lanternas vermelhas no alpendre. Nada de pinheiros, azevinhos ou canções em corais. Aqui, tudo era diferente. E, estranhamente, reconfortante.

O telefone vibrou sobre a bancada. Era Sofia.

— Moshi moshi? — atendi com o meu habitual bom humor, fazendo-a rir do outro lado.

— Ainda não aprendi essa parte! Bom dia, Aiko.

— Bom dia. Estava a pensar em ti, na verdade.

— Ai sim? — respondeu ela, curiosa. — Ainda a digerir o nosso fim de semana na casa do Noah?

Sorri, sentindo o rubor subir-me ao rosto.

— Digamos que sim. Mas primeiro, queria alinhar contigo o encerramento das aulas aqui no ateliê para as férias de fim de ano.

— Claro. Tinha isso anotado. O grupo de quinta já confirmou, e o pessoal de segunda também. Não te preocupes, está tudo orientado.

— Ótimo. Aproveito para perguntar... Achas que podíamos tomar um café antes do final da semana?

— Para conversar?

— Sim... e para acertar o transporte até à Serra da Estrela. Achei desnecessário levar o meu carro, mas não sei exatamente como vai ser a logística do dia 30.

Houve uma pausa curta do outro lado da linha.

— Tu estás a perguntar-me pela logística... ou pelo Noah? — Sofia riu, em tom provocador.

— As duas coisas, talvez. — respondi, num sussurro cúmplice. — Ele... intriga-me.

— E com razão. Mas gosto de ver-te assim. Não é comum.

— Não sei se gosto de sentir isto. Tenho a sensação de que me perco dentro de uma coisa que não sei nomear. É como estar a moldar barro sem saber que forma quero dar-lhe.

— Isso é poesia pura. — disse Sofia. — E talvez seja exatamente disso que precisas: moldar sem pressa. Viver sem pressa.

Olhei novamente pela janela, onde o mundo parecia respirar devagar.

— Amanhã? Às 10h? Naquele café ao lado da florista, onde servem aquele caffè latte com espuma em forma de folhas de outono?

— Feito. Vejo-te lá.

Desliguei e permaneci um momento com o telefone entre os dedos. A ideia de rever Sofia reconfortava-me, mas havia algo mais. Algo que me fazia querer saber mais sobre aquele homem com olhos serenos e uma voz carregada de paz.

Noah.

Um nome que agora ocupava espaços novos no meu pensamento, como se as suas palavras tivessem ficado impressas nalgum canto do meu espírito.

Sim. Amanhã, seria apenas um café. Ou talvez, o início de um novo molde.

O dia seguinte chegou com céu limpo, e apesar do frio, havia sol a dourar as fachadas dos prédios antigos. Vesti o meu sobretudo azul escuro, envolvi-me num cachecol de lã cinzenta e caminhei até ao café. O aroma a café acabado de moer escapava pela porta entreaberta, misturando-se ao perfume das flores da montra da florista ao lado.

Sofia já estava sentada, com uma chávena entre as mãos e os olhos postos na rua. Sorriu assim que me viu.

— És sempre pontual.

— Herança japonesa — respondi, sentando-me. — E tu, sempre com bom gosto para escolher lugares.

— Este tem o charme certo para conversas sem pressa — disse ela, empurrando-me o menu. — Mas já pedi o teu latte. Sei que gostas com espuma fina e pouco açúcar.

— Sabes tudo. — sorri, aquecendo as mãos na minha chávena.

Durante alguns minutos, ficámos em silêncio, observando a rua e os passantes. Era como se aquele café fosse uma pequena pausa no tempo.

— Estive a pensar — comecei. — O Noah é... diferente. Há nele uma serenidade que me incomoda e me atrai ao mesmo tempo.

Sofia riu, baixinho.

— Eu percebo. Ele tem aquela calma que parece vir de outro lugar. Talvez seja a fé dele. Ou a forma como vê o mundo.

— Não estou habituada a alguém que vive com tanta certeza. Eu sou cheia de dúvidas.

— Talvez seja por isso que ele te intriga tanto.

Olhei para o café a arrefecer lentamente na chávena.

— Sentes que... ele pode ser perigoso? Não no mau sentido. Mas no sentido de mudar algo em mim?

— Sim. Mas às vezes é disso que precisamos. De alguém que abale o que julgávamos estável.

Suspirei.

— Não quero magoá-lo. Nem ser arrastada para algo que não entendo.

— Ninguém entende tudo no início. Mas há encontros que valem a travessia, mesmo com tempestade.

Ficámos ali, ainda por alguns instantes, como se partilhássemos um segredo. Um pacto silencioso entre duas mulheres que sabiam que algo estava prestes a mudar.

— Sobre o dia 30 — disse finalmente. — Achas que posso ir contigo e com o David no vosso carro? Assim evito levar o meu.

— Claro que sim! O carro é grande e ainda temos lugares livres. Vai ser mais prático assim.

— Não tens de agradecer, Aiko. Vai ser uma viagem inesquecível, eu sinto isso.

E eu também sentia. Sentia com a pele, com a mente, com um medo doce e estranho no fundo do peito. Porque quando o coração começa a moldar algo novo, não há como saber o que vai sair dali.

De regresso a casa, aproveitei o fim de tarde para pôr ordem no estúdio. O silêncio era profundo, quebrado apenas pelos meus passos no chão de madeira. Comecei a organizar as prateleiras, agrupar tintas, empilhar tecidos e guardar peças que não usaria até ao novo ano.

Foi então que a encontrei: uma pequena taça de cerâmica que eu própria tinha moldado há anos, durante uma fase em que procurava fugir da perfeição. Estava torta, com as bordas assimétricas e um vidrado que escorrera de forma imprevisível.

Sorri ao pegar nela, sentindo o seu peso entre os dedos.

— És imperfeita... e ainda assim, tão cheia de carácter — murmurei, falando sozinha.

Coloquei-a sobre a bancada, olhei para ela e, sem saber porquê, pensei no Noah.

— Talvez ele também me veja assim... — sussurrei. — Inacabada, desalinhada, mas com algo de verdadeiro.

Fiquei ali, a olhar para a taça como se ela pudesse responder, como se cada curva falasse da minha confusão, do meu medo e da minha vontade absurda de continuar a moldar. Mesmo sem saber exatamente o quê.

— A vida é mesmo isso, não é? — acrescentei, como quem filosofa com o próprio silêncio. — Uma peça em constante moldagem, entre mãos que apertam, soltam e voltam a recomeçar. Talvez o segredo não esteja em saber a forma final... mas em aceitar ser barro nas mãos do tempo.

 

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