Capítulo 10 -Três Horas, Um Céu Fechado e Quatro Corações Abertos

Neusa Mateus

O dia 30 amanheceu cedo, envolto numa neblina que cobria a cidade como um cobertor mal estendido. Acordei com o som do alarme e um frio insistente que me fez demorar alguns minutos a sair da cama. Tomei o pequeno-almoço em silêncio, revisei a mala uma última vez, e sentei-me no banco da entrada com o casaco dobrado no colo, esperando o som da buzina.

Às 7h10 em ponto, David e Sofia chegaram. O carro estava quente, o rádio ligado baixinho numa estação qualquer e o aroma do café ainda recente enchia o habitáculo.

— Dormiste bem? — perguntou Sofia, sorridente.

— Mais ou menos. Andei a pensar em mil coisas. Mas estou pronto. — sorri, colocando a mala no porta-bagagens e entrando.

Seguimos pelas ruas ainda vazias da cidade. Conversa puxa conversa, e falámos de tudo: da neve prevista, da agenda para a estadia, da comida que cada um levava. Mas em momento algum foi mencionado que Aiko vinha connosco. Comecei a estranhar quando, já na zona de Paranhos, David encostou o carro em frente a um prédio residencial.

— Vamos buscar mais alguém? — perguntei, confuso.

Sofia apenas sorriu.

— Uma pequena surpresa. Já vais ver.

Então vi-a: Aiko, com o cabelo preso num coque despretensioso, um cachecol cor de mostarda, e uma mochila nas costas. Carregava também uma caixa grande que eu reconheci de imediato.

Desci do carro antes que qualquer um dissesse algo, caminhei até ela e peguei na caixa.

— Que belo reencontro — disse, olhando-lhe nos olhos. — E essas são as nossas canecas, certo?

Ela riu, meio sem jeito.

— Não podia deixá-las. Todas a postos para o nosso chocolate quente na passagem de ano.

— Ainda bem que vens. Esta viagem vai ganhar outro ritmo agora. — disse, com um sorriso genuíno.

Arrumámos tudo e seguimos viagem. Já no carro, enquanto ajeitávamos os cintos, a conversa começou.

— Planeado? Eu? Nunca faria tal coisa. — David riu.

— Só nos esquecemos de dizer-vos que iam partilhar o mesmo ar por três horas. Nada de mais. — Sofia completou, a rir-se com ele.

— Foi tudo arquitetado para nos emboscar, hein? — disse eu, fingindo indignação.

— Eu estou a achar ótimo. — disse Aiko, divertida. — Estava a contar com um caminho silencioso. Afinal, estou numa road trip em boa companhia.

A conversa tornou-se leve e divertida. Falámos de comida japonesa, de tradições africanas, da vez em que David tentou cozinhar tofu e incendiou uma frigideira. As risadas tornaram-se frequentes.

De repente, começa a tocar no rádio "Forever Young", dos Alphaville.

Aiko ajeitou-se no banco e cantarolou os primeiros versos, virando-se para mim com um sorriso desafiante.

— Conheces esta?

— Por favor, esta música é hino. — respondi, e comecei a cantar com ela, em tom quase teatral.

Aos poucos, transformamo-nos numa dupla de palco improvisada. Ela cantava, eu respondia, um verdadeiro dueto com gestos, risadas e desafinações propositais.

Sofia e David, rendidos, entraram no coro, e por breves minutos, o carro tornou-se um palco em movimento. Ríamos como crianças num acampamento.

Quando a música terminou, ainda havia ecos de alegria no ar. E foi então que Aiko se virou para mim e disse, com um brilho malandro nos olhos:

— Três horas enclausurados a respirar o mesmo ar. Vais aguentar, Noah?

Ri, surpreso pela leveza da sua provocação.

— Desde que o ar seja compartilhado com respeito e sorrisos, aguento sim. Aliás, começo a achar que pode ser uma benção.

Ela sorriu, e houve um segundo de silêncio bonito, daqueles que dizem mais do que mil palavras.

O tempo foi passando e, entre curvas e paisagens cobertas de geada, os nossos olhos encontraram o conforto da cumplicidade.

Já quase a chegar, Aiko bocejou discretamente e ajeitou-se no banco.

— Noah...

— Sim?

— Eu... estive a trabalhar até tarde ontem. Se não te importares, vou encostar-me aqui ao teu ombro. Prometo que não é para dormir profundamente. Só preciso desligar um pouco.

Fiz um gesto suave com a cabeça, e ela encostou-se com cuidado. Passaram poucos minutos e senti a sua respiração abrandar. Estava ali, presente e tranquila.

Olhei pela janela, os montes a desfilar ao longe, e pensei:

— Senhor... o que estás a escrever? Porque sinto que isto não é apenas uma viagem.

 

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