CAPÍTULO 1 - Raízes e Caminhos
Neusa MateusFevereiro 2020
Aiko sempre chegava antes de mim à estufa. Eu a encontrava descalça, sentada entre as orquídeas, os cabelos presos de qualquer jeito, o rosto pintado com vestígios de argila. ‘Bom dia, Noah’, ela dizia, e eu respondia com um sorriso.
Eu ainda ouço a voz dela. Ainda sinto o cheiro do chá de gengibre que ela deixava pronto para mim.
Mas a verdade é que a cadeira onde ela sentava está vazia há muito tempo.
O silêncio nunca pesou tanto nesta casa. Há dias em que ainda espero ouvir os seus passos na cozinha, ou o som da sua risada entre as cerâmicas. Mas tudo o que resta são ecos de uma vida que nunca voltará. Eu disse que o nosso amor poderia sobreviver a tudo. Mas não estava preparado para isto.
Se alguém me dissesse que eu me apaixonaria por ela, eu teria rido. É engraçado como a vida costura os nossos destinos sem nos pedir permissão. Agora, escrevo estas palavras para que eu nunca me esqueça de como tudo começou.
Para que, onde quer que ela esteja, saiba que foi o meu milagre mais improvável.
Alguns anos antes...
15 de novembro de 2015
O som do teclado e das conversas ao fundo preenchia o espaço amplo do escritório.
Eu girava a caneta entre os dedos, a expressão perdida entre planilhas e relatórios. Ao lado, David esticou-se na cadeira, soltando um suspiro exagerado.
— Este ano o Natal vai ser na minha casa — anunciei, batendo a palma da mão na mesa para chamar a atenção dele. — Quero reunir os amigos e pensei que tu e a Sofia podiam vir.
David ergueu as sobrancelhas.
— Na verdade, a Sofia já convidou Aiko, a sua instrutora de cerâmica para passar o Natal conosco, onde quer que fôssemos. Elas estão a trabalhar juntas na coleção de louças de Natal para nossa casa.
Soltei um leve sorriso.
— Então, está decidido. O Natal será lá em casa, e todos são bem-vindos.
David inclinou-se para frente, o olhar curioso.
— Vais gostar dela, Noah. Tenho certeza.
E, sem saber, eu estava prestes a conhecer a mulher que mudaria minha vida para sempre.
Quando penso nos Natais da minha infância, lembro-me não apenas da comida, mas também dos rituais que os meus pais faziam questão de preservar. Em Nakuru, o Natal começava muito antes do dia 25. No início de dezembro, a minha mãe trocava as cortinas da sala por umas novas, brancas e bordadas à mão. O meu pai, por sua vez, tratava de organizar os cânticos natalícios na igreja local. Eu adorava aquele tempo.
Recordo-me com nitidez de como a minha mãe, Grace, preparava o famoso Irio – o prato que, para mim, era o emblema do Natal. Enquanto os outros miúdos corriam à volta da casa, eu ficava encantado a observar a magia que se operava na cozinha. Grace reunia com esmero os ingredientes: batatas cozidas até ficarem macias, milho fresco e ervilhas, que ela salteava levemente com uma pitada de sal. Depois, juntava tudo e, com o auxílio de um pilão, misturava os ingredientes até obter uma consistência rústica, mas harmoniosa, realçada com um punhado de coentros picados e um fio generoso de azeite.
O aroma que invadia a nossa casa era algo que transcende a mera memória gustativa; era como se o próprio espírito do Natal se condensasse naquele puré rústico, que nos unia a todos numa partilha silenciosa e verdadeira. Eu, desde miúdo, via ali não só um prato, mas a essência da nossa terra – simples, sincera e repleta de afeto.
Hoje, agora que sou adulto, o Natal adquiriu um significado ainda mais profundo. Não é apenas a recordação de uma infância feliz, mas a antecipação de um futuro em que anseio constituir a minha própria família e transmitir, com orgulho e, por vezes, com um toque de irreverência, as tradições que moldaram a minha identidade. Confesso que adoro cozinhar, e muitas vezes sonho em reinventar a receita do Irio – talvez com a minha própria interpretação – para que os meus futuros filhos possam sentir, no paladar, a mesma conexão com a nossa terra.
Assim, enquanto me perco entre memórias e planos, descubro que o Natal é muito mais do que uma data. É a celebração das nossas raízes, um lembrete de onde viemos e uma promessa silenciosa do que ainda podemos ser. E, mesmo que o percurso seja repleto de desvios inesperados, as raízes continuam a ancorar-nos, oferecendo-nos o conforto de um lar onde o amor e a tradição se encontram.
Enquanto divagava sobre isso, a tocar mentalmente a lista do que ainda precisava de organizar, o som do meu telemóvel interrompeu os meus pensamentos.
— Noah Otieno, bom dia.
— Bom dia, Sr. Ferreira. Como posso ajudar?
A voz do cliente, urgente e preocupada, adentrou o meu espaço:
— Noah, tenho um problema na estufa. Com a aproximação do Natal, notei que as condições ambientais mudaram e as minhas orquídeas estão a apresentar sinais de stress. As medidas que implementámos não estão a funcionar como esperava.
Suspirei, já habituado aos imprevistos que a natureza impõe.
— Compreendo, Sr. Ferreira. A época festiva traz mudanças inesperadas no microclima. Precisarei de verificar os sistemas de controlo ambiental – a humidade, a temperatura, e a ventilação – para identificar o que pode estar a causar este desequilíbrio. Pode agendar uma visita para amanhã cedo?
Houve uma breve pausa do outro lado da linha.
— Amanhã seria ideal, mas preciso que tudo esteja resolvido antes do Natal. As orquídeas são fundamentais para a decoração do evento que estou a preparar.
Pensei num instante e respondi:
— Perfeitamente, Sr. Ferreira. Farei o possível para ajustar os parâmetros e assegurar que o ambiente na estufa se mantenha ideal para as orquídeas. Confirma a visita para amanhã às 9h.
— Confirmado, agrónomo. Agradeço a sua prontidão. Fico a aguardar.
Após desligar o telemóvel, olhei para o relógio e respirei fundo, ciente de que o frenesi das minhas responsabilidades profissionais tinha novamente interrompido os meus devaneios natalícios. Esse tipo de situação é quase o quotidiano de um agrónomo: imprevistos surgem a todo o momento e, num piscar de olhos, tenho de conciliar a paixão pela terra com as exigências dos clientes.
Ao voltar à minha secretária, deixei a mente divagar sobre o que significa realmente ser agrónomo. Não se trata apenas de trabalhar com plantas, mas de compreender os ciclos naturais e de encontrar a harmonia entre a tecnologia e o ambiente. Agronomia é a arte e a ciência de gerir recursos naturais para produzir alimentos e preservar a biodiversidade, sempre com uma visão sustentável e de respeito pelo planeta. No meu dia a dia, projeto estufas que simulam condições ideais para o crescimento das orquídeas – aquelas que tanto me apaixonam – e crio sistemas integrados de cultivo, onde cada planta tem o seu papel e cada espaço é otimizado para o máximo de eficiência e beleza natural.
É essa paixão pelo equilíbrio ecológico e pela transformação do ambiente que me impulsiona. Cada projeto que lidero, por mais desafiante que seja, é uma oportunidade de unir tradição e inovação, tal como o Natal da minha infância, onde os sabores e aromas se entrelaçavam para contar histórias. E, mesmo que o tempo nos imponha correria e imprevistos, é na agricultura sustentável que encontro o meu refúgio e o meu propósito – um legado que espero um dia transmitir à minha própria família.
Assim, enquanto me preparo para os desafios deste Natal, lembro-me que cada detalhe, cada planta, é uma promessa de renovação e de um futuro mais harmonioso.
Bem-vindo à realidade de um agrónomo, onde a paixão pela terra se alia à urgência dos imprevistos, e cada dia é uma nova promessa de harmonia e renovação.