CAPÍTULO 3 - Uma Mesa, Duas Gerações, Um Propósito
Neusa Mateus21 de Dezembro de 2015
O frio do inverno abraçava as ruas do Porto com um sopro gelado e perfumado pelo aroma de castanhas assadas, vendidas por ambulantes que espalhavam as brasas ao longo das calçadas de pedra. O rio Douro, imponente e sereno, refletia as luzes cintilantes da Ribeira de Gaia, onde barcos rabelos descansavam ao sabor das águas calmas. As luzes douradas dos lampiões acendiam a cidade num brilho suave, criando um ambiente quase etéreo.
Dentro do restaurante, o calor reconfortante contrastava com o frio cortante do lado de fora. Escolhemos uma mesa junto à janela, de onde podíamos ver a Ribeira em toda a sua majestade. Meus pais estavam radiantes; Samuel Otieno, com seu ar solene, mas sempre afetuoso, olhava para mim com um brilho de orgulho. Grace Otieno, minha mãe, envolvia-me com o seu olhar acolhedor, aquele olhar de mãe que fala sem precisar de palavras.
O garçom aproximou-se com um sorriso discreto, pronto para anotar os pedidos.
— Vou querer o Bacalhau à Brás — anunciou meu pai, ajustando os óculos sobre o nariz. — Hoje apetece-me algo tradicional.
— E eu, um polvo à lagareiro — disse minha mãe, sorrindo ao imaginar o prato suculento, com batatas assadas ao murro e aquele azeite dourado e generoso.
Deixei os olhos passearem pelo menu, mas já sabia o que queria.
— Um risoto de cogumelos selvagens para mim. Preciso de algo que me aqueça e me traga boas recordações — respondi, fechando o menu.
— Oh, filho, que bom estar contigo esta noite — disse minha mãe, tocando de leve na minha mão. — Pena que este ano não poderemos estar contigo no Natal. Mas sabemos que estarás rodeado de pessoas queridas.
Assenti, compreendendo a decisão deles.
— Entendo, mãe. Sei que essa viagem a Espanha é importante para vocês. O pastor Javier e a esposa sempre foram grandes amigos da nossa família. Sei que vão levar palavras de esperança àquela comunidade.
Meu pai, com sua voz grave e carregada de sabedoria, acrescentou:
— Deus nos chama a servi-lo em vários lugares. Desta vez, sentimo-nos guiados a estar com eles. E tu, meu filho, foste chamado a servir aqui, a abrir o teu lar e a levar a luz do Senhor de outras formas.
— Pois é, e este ano a casa estará cheia — acrescentei, sorrindo. — David e Sofia vão estar lá, e Sofia convidou uma amiga que, pelo que percebo, está um pouco perdida sobre questões de fé. Parece que este será um Natal diferente.
Minha mãe ergueu ligeiramente a sobrancelha, interessada.
— Quem é essa amiga?
— Aiko. Japonesa, ceramista, naturista, cética em relação a Deus — expliquei brincando com a toalha de mesa. — Não sei bem o que esperar, mas sei que Deus tem planos para cada um de nós.
Minha mãe sorriu com ternura.
— Ah, meu querido, a fé não se impõe, mas se mostra. Talvez, apenas o facto de ela estar rodeada de pessoas que vivem essa fé de forma autêntica já seja um presente para ela.
O jantar foi servido e, entre uma garfada e outra, saboreávamos também aquele momento em família, de partilha e cumplicidade. A cada palavra trocada, sentia-me mais agradecido pelos pais que Deus me deu.
Enquanto jantávamos, deixei-me levar pelas recordações de como os meus pais chegaram a Portugal, há mais de trinta anos. Não foi uma caminhada fácil. Vieram do Quênia num tempo em que emigrar era uma aventura de fé e coragem. Foram enviados em missão, impulsionados por um chamado divino para estabelecer uma igreja no Porto e guiar almas num país de cultura e valores diferentes dos que conheciam.
O pastoreado nunca foi apenas um ofício para eles, mas um compromisso de vida. No entanto, equilibrar essa missão com a necessidade de me dar estabilidade foi um desafio. Enquanto pregavam, aconselhavam e ajudavam famílias a encontrarem a fé, também se preocupavam com a minha educação, para que eu tivesse oportunidades que talvez não existissem se tivéssemos ficado no Quênia. Trabalharam incansavelmente, dividindo-se entre a fé e a responsabilidade de criar um filho num mundo onde os valores pareciam cada vez mais distantes de Deus.
Foi difícil para eles verem-me crescer num ambiente mais liberal do que estavam habituados, onde questionamentos surgiam a todo instante. Sempre tentaram cultivar a minha fé, mas sem impor nada. Eles mostravam através do exemplo, da firmeza, da bondade e da devoção inabalável. Sempre confiei neles, mesmo quando, na adolescência, senti-me dividido entre a minha criação e as tentações do mundo à minha volta.
Mas, acima de tudo, os meus pais eram um testemunho vivo de amor. Samuel e Grace são como duas peças de um quebra-cabeça perfeito. Meu pai, um homem de poucas palavras, mas de fé inquebrantável, sempre com a postura ereta e o olhar tranquilo de quem confia plenamente na provisão de Deus. Minha mãe, a doçura em pessoa, sempre cheia de palavras de encorajamento e de um carinho que acolhia qualquer coração aflito. Onde um era firme, o outro era brando. Onde um questionava, o outro tinha respostas serenas.
Eles sempre souberam equilibrar-se. Nas dificuldades, nunca houve desespero, apenas orações silenciosas, sorrisos pacientes e mãos unidas. Já os vi perderem tudo e, ainda assim, levantarem na manhã seguinte agradecendo a Deus. E, talvez, seja por isso que o amor deles me inspira tanto. Eles me ensinaram que o casamento não é sobre grandiosidade ou momentos perfeitos, mas sobre compromisso e confiança em Deus, sobre colocar a fé acima do medo.
Para sobremesa, escolhemos o clássico Pastel de Nata com uma leve camada de canela, acompanhando com um bom Vinho do Porto, cuja doçura se misturava harmoniosamente com o frio lá fora.
Antes de nos despedirmos, meu pai pousou a mão sobre o meu ombro e, com sua voz serena, mas firme, disse:
— Lembra-te, Noah, que somos apenas instrumentos. Fazemos a nossa parte, plantamos a semente, mas é Deus quem dá o crescimento. O que tens a oferecer às pessoas não é apenas um lar no Natal, é um testemunho de amor e esperança.
Assenti, deixando aquelas palavras ecoarem dentro de mim. No fundo, o Natal era sobre isso: um chamado para amar e servir.
E naquele ano, eu sabia que algo especial estava para acontecer.